GIRA-MUNDO
A minha atividade de hoje aqui no blog é uma resenha sobre um texto de Regina Ruth Rincon Caires que por sinal está hoje na página da Revista Zamisdat com outro conto navalha maravilhoso que também vale a pena ler.
Bem, aqui segue minha leitura de Gira-mundo. Antes, a figura que escolhi para minha postagem não é a mesma da autora. Escolhi um gira-mundo de tecido porque ele representa nova vida, mas também está ligado com tudo o que a pessoa presenteada viveu até o momento em que o recebe.
Espero que curtam minha escrita
GIRA-MUNDO (Regina Ruth Rincon Caires)
Texto escrito para o Desafio Engrenagens da Criação sob o pseudônimo ANACLETO GRALHA.
Gira-mundo, um conto de arte
“Um velho relógio de parede numa fotografia — está parado?”
Mário Quintana
Introdução
O Conto é uma fotografia da alma adquirida com o olhar de quem escreveu. Desde o início, quando conhecemos Rosaldo e descobrimos sua origem, som e imagem se fazem presentes: "E ele continuava lá, quieto, imóvel, com a lama ressecada recobrindo o corpo feito casca de árvore. Com o canto das unhas lascadas e imundas, empurrava a crosta que se formava sobre o joelho. Aquele som craquelado lhe dava prazer." Não há como pensar esse texto sem ouvir o som do barro quebrando e sem ver o corpo-casca de árvore do menino! Embora, dizer que um texto é imagem é quase uma pleonasmo vicioso. A escrita tanto para o autor quanto para o leitor, pede imaginação e o ato de imaginar nada mais é que o mesmo que criar imagem. Entretanto, a autora de ''Gira-mundo'' cria um espaço imagético grandioso que se repete na mente do leitor. Os sons, detalhes e cenários criados apenas se repetem sob o olhar de quem lendo, acessa o banco de imagens que está posto no texto. Grandiosidade que vejo em Euclydes da Cunha, Alberto Rangel e em Ernest Hemingway. Sim, a autora consegue criar a ''fusão de luz e de sombras'' que tornam os cenários de sua escrita móveis, maleáveis ao solo imaginativo de quem vê sua escrita.
Da estrutura e Linguagem
O conto tem uma estrutura bem marcada. Começo, meio e fim seguindo um propósito de engrenagem, porém sem marcas específicas – e nisso está todo o deslumbramento do texto. A Personagem bem marcada segura bem o enredo.O narrador tem uma fala mais informal utilizando de palavras e expressões de um vocabulário próximo do popular, recriando algumas. O tempo é psicológico, levando de forma cronológica a narrativa que apresenta Gira-Mundo bem acentuado.
A Linguagem é bem acertada. As imagens criadas são amplas, cobrem bem tanto o que a narrativa exige para contar a história. Similar na narrativa ao conto “Mata, matraca, catraca”, aqui, porém, não há uma engrenagem visível, marcada por algo. É, ao meu ver, um espetáculo de narrativa imagética, enquanto o outro prende no ritmo, Gira-Mundo prende no jogo de luz e som. O uso da Semântica é praticamente uma segunda pele do texto, segue o ritmo, toda vez que muda o ambiente o campo de significados acompanha e se estende com presteza, sem exageros, como tinta colorida em uma tela, pontos que sugerem mais do que retratam e por isso mesmo faz do risco arte.
Os dois contos podem ser analisados partindo da ideia de que Gira-mundo é uma viagem a um ser humano – sem ser Fabio Jr, sim, eu tinha que pensar nele – mostra, sutil, mostra como a vida passa pela personagem principal e a muda, devagar, aos poucos. Mata Matraca conta o tempo de um homem sem chegar dentro dele, sem apresentar suas nuances e por isso mesmo é belo em seu espaço. Ambos são narrativas muito bem elaboradas e que não deixam espaço para o leitor ficar entediado.
Para ser sincera, alguns textos deste Desafio me fizeram ir além do olhar do leitor comum, que é algo que tenho orgulho de manter apesar dos anos de estudo de Teoria e Literatura e, quem me conhece sabe que não sou pessoa de jogar na cara de ninguém o que sei. Para mim uma leitura precisa ser antes de tudo lida e só depois digerida. Gira-mundo não nos dá essa possibilidade. Na verdade ele me fez ser exatamente o leitor que Ruth Silviano Brandão descreve, aquele que lê o “ texto literário sublinha, seleciona, reescreve” o que foi lido.
Entretanto não há como de fato reescrever esse conto, ele está pronto, uma ópera magistral. E tanto é que me remete não só a uma das composições de Mário Quintana, me leva a reler na mente o livro Esconderijo do tempo.
Fiquei lutando com esse texto e me perguntando como assim que esse conto não diz aonde vai, engana-se Jean-Bertrand Pontalis, ele sabe seu destino e é perfeito, uma fotografia do correr da vida desde o momento que se acorda – para a real existência, quando se percebe humano: “− Anda logo, moleque! Vá se jogar na água limpa antes que esse barro todo vire pedra! Avie!” e que modo de se descobrir vivo!
Seis horas, talvez? Ele amanhece aí, um dia inteiro pela frente… Diferente de “Mata matraca catraca” que marca o tempo com a brincadeira fonológica e usa o tempo do relógio de forma comum, Gira-Mundo faz as engrenagens da vida fazer seu trabalho de forma silenciosa. Como é a passagem da vida e como são seis horas, então como diria Quintana, “há tempo…”. E porque há tempo o menino pode brincar com o barro e o narrador construir esse cenário semântico digno de uma fotografia, onde figuram a sinestesia: “Aquele som craquelado lhe dava prazer. Não era pelos ouvidos que o percebia, ouvia com o gosto e estética. A cena descrita do pai é digna de uma música: “O corpo enlameado do pai, reluzindo ao sol, mostrava uma esbelteza que não lhe era própria. (…). É ler e ver a cena: “As várias camadas de lama ocultavam o peito esquálido, pobre de carnes. E, quando se erguia, atolado até a cintura, infalivelmente, trazia na mão um agitado caranguejo.” Sim, o texto se estampa como uma fotografia, em alguns segundos o leitor tem uma experiência perceptiva e a identificação acontece, seja na vida ou na arte, ele já viu algo similar, não necessariamente com barro e, depois disso surge a interpretação. O texto em todo o tempo nos coloca em uma experiência mental e ótica constante. O que não acontece no conto narrado por Admirável Mundo Novo, pseudônimo utilizado por Catarina Cunha nessa edição do Desafio.
Vale lembrar “no campo das relações interartísticas, as propostas se multiplicam”, escreve Tania Franco Carvalhal e, Marilene Weinhardt completa “Criar em literatura é estabelecer diálogos entre textos”, entretanto encontrar dois textos que se conversam em um mesmo Desafio é raro e só não fiz uma análise realmente comparativa porque deixaria de apresentar as malhas da narrativa de Anacleto Gralha – menino que nome diferente!
Ainda sobre texto fotográfico, Merleai-Ponty mostra que *“Ver é entrar em um universo de seres que se mostram, e eles não se mostrariam se não pudessem estar escondidos uns atrás dos outros ou atrás de mim. Em outros termos, olhar um objeto é vir habitá-lo e dali apreender todas as coisas segundo a face que elas voltam para ele. E quando o que vemos é um texto como esse , fica fácil viajar em suas nuances e descobrir o que cada pincelada escondida em forma de palavras e significados estão nos contando.
Cada movimento da narrativa tem o poder de produzir identificação e proximidade no leitor como se ele fosse na verdade espectador de uma imagem exibida em tela. Na verdade o crítico Ismail Xavier definiria esse texto como uma decoupage perfeita porque consegue transmitir todas as cenas sem mostrar os cortes – e de decoupage eu entendo, e quase nada de cinema.
E que força tem esse narrador! Ele nos guia calado, sem dizer nada sobre si, só monitorando as mudanças das cores e dos passos da dança que quer executar.
Assim, é interessante notar que Gira-Mundo é uma criação literária, porém não é imoto, pelo contrário, sendo um relógio em uma fotografia, ainda assim move-se. Para falar da situação de miséria sem citar as palavras que a denunciam, cria um campo visual: “Andava cansado do manguezal. (…) acompanhar o pai na cata de caranguejo (…) Aquele alagadeiro acatingado o agoniava. (…) …o sabor do cozido, feito com o refugo dos caranguejos, (…) Sem gosto, sem graça. Insosso.”
A alma nômade não passa desapercebida pelos olhos sábios da mãe e a narrativa a apresenta com simplicidade: “− Homem, esse menino é fraco de apego, parece que vive tentado, cheio de ilusão…”. Nas palavras do pai o filho se ajeita só, se apoiado: “ Só precisa da nossa bênção.” Mas o cigano tinha alma solta e só. Há ainda nessa parte do texto uma grande sacada entre criar projetos a partir do que ouve: “Rosaldo, alma nômade, ouvia e aparafusava cada palavra.” Aparafusar entra no texto como arquitetar e é um novo significado, mas que sempre esteve aí. Um projeto desses precisa ser todo ele muito bem acabado, sem pontas soltas. A audição é inspiradora para ele, antes lhe deu a sensação de paladar na criação sinestésica já estudada.
E de novo o relógio se move silencioso. Rosaldo saiu do manguezal e “enveredou-se no ofício de engraxate.” Vivia abaixado para pegar caranguejo, vive agora abaixado, cuidando de sapatos alheios. Uma atividade que tem suas próprias leis, “hierarquia severa. Ocupar uma praça exigia licença do líder.” Porém, mesmo aprendendo como lidar, não aceitava o modo em que os colegas de profissão tratavam os clientes. E para assinalar o fato o narrador trabalha com a ideia de justiça: “O preço deveria ser justo, sem maquinação.”, de respeito: “Havia certo escárnio no trato, artimanha descabida.” e honestidade “Percebendo que não mudaria o vício do bando, procurou se distanciar, pouco a pouco.” E aqui, o que antes era comunidade, com o conhecimento das pequenas corrupções cometidas no meio, o narrador reproduz o retrato colocando duas palavras de forte significados juntas: “o vício do bando”.
De novo outro avanço na história. Rosaldo conhece outro espaço, tão braçal como os anteriores, o ambiente de pescado. Para uma alma sedenta de viagem, estar preso a um equipamento de transporte de itinerário tão restrito não era o sonho dourado e a escolha pelo pescado e não pela pesca passa primeiro pela personificação: “O mar não lhe iludiu” e desemboca em um eufemismo, afinal, não se deixou seduzir por “aqueles barcos que desinteiravam famílias”
Já o nome do estabelecimento é de uma ironia fantástica: Esmeraldino do Beco. Lembrar que esmeralda é uma pedra valiosa e que não seria deixada em qualquer lugar. Mas com Esmeraldino vem uma nova paixão: o futebol. E aqui a narrativa insere fragmentos históricos interessantes. Retratando o real na ficção, aqui percebe-se que o tempo cronológico está situado em meados dos anos 60, o roedor que desafia o árbitro do jogo é Castor de Andrade Corria ano de 66 se deu o fato. O árbitro Idovan Silva marcou uma penalidade duvidosa e o homem endiabrado entrou de armado no campo e a coisa não esquentou porque a segurança do estádio era especializada e o tirou do caminho. Para as crônicas futebolistas o quase atentado é um marco. E com isso nosso personagem perde a ilusão com o esporte. Entendeu que o jogo acontecia fora do gramado: “ rodava no ritmo e na força das balas do tambor. Cartas marcadas, enganação dos sentidos.” E de novo a corrupção faz com que ele mude o rumo.
E daí foi para o samba. E mais um espetáculo semântico em todo o cenário do samba. E poesia: “ Recusou o convite de fazer parte da bateria, não queria mãos presas (…). No samba, como na vida, precisava do corpo todo para se entregar, sem amarras. Sem controle.”
E aí deu sexta-feira, sem que ele visse. Virou homem “entre o jogo do bicho e o samba”. De tudo o que foi contaminado pelo poder do dinheiro, ele deixou, menos samba, “este não abandonava a alma de Rosaldo. Era paixão moldada.” E seus amores eram todos de carnaval.E aqui há a metáfora para paixão: “ Bastava acabar a folia” e ele mudava de “um barraco para outro”. Para mostrar seu desapego a narrativa afirma: ‘Só levava as roupas, nada mais.” E surge um desfile de flores até Aurora, com ela “foi mais que rabicho.” Com ela foi “benquerência” , e junto de seus “de guéri-guéri” veio a decepção, ela amava outro. Mas era sincera, contou que a barriga não era dele, era “Escrupulosa, percebendo o entusiasmo desmedido do companheiro, mesmo com o coração em frangalhos, (…) contou-lhe a verdade. E veio Carlota. “Logo as roupas de Rosaldo rolaram para outro barraco.”
O relacionamento com a aderecista rendeu algumas horas de seu relógio, “foi a companheira de muitos carnavais.” Cuidava dela e dava broncas pelo vício da bebida: “Mas ele também sabia que seria sempre um fraseado sem resultância. Falava por amar.” E essa jogada: falava por amar! Crú, inesperado, bate na fala do pai e volta, justo pelo “fraseado sem resultância”, marca paterna, em que a quebra da sequência, a informação de que a parceira e o Rosaldo são almas iguais de teima. E nisso, nessa “fala por amar”, volta o passado e a certeza de que o pai tão seco quanto o barro que trincava tinha amor por ele.
E de novo, uma perda, morre Carlota e entra Clarice. Mas ela é o anticlímax. Observe que não teve mudanças de barraco, a alma dele enfim estava escapando do barro que a amálgama, iludindo-o.
E o final é brusco, interrompe a sequência de mudanças locais, sempre no mesmo eixo, de cabeça baixa, de bola que rola sem parar, de jogo que não enriquece, de samba que aquece mas que não cumpre a sina. Uma nova mudança. Mas não de barracão, é um pulo do adulto aos planos infantis que a mãe via nele. O relógio sem parada, que é só ida, é uma engrenagem em rosca no sonho, sem porto fixo, só girando. E indo a um ponto desconhecido é viver ou morrer, é subjetivo, afinal, o trem pode ser real, mas pode ser só a maria sem fumaça da vida que só agora ele que embarcou.
É assim que se dá sua viagem. Quando ele observa o povo pela plataforma,está no banco que é igual ele, tem estrutura forte e capa frágil. A estrutura dele é seu ideal de ir além, segue com ele ainda, a capa é tanto o corpo que envelhece quanto as vivências que interromperam seu desejo de seguir viagem, soltar as asas.
E de novo o texto mostra a forma poética. Burburinho brota, “passos apressados”, uma hipérbole em montoeira e uma comparação: “Parecia bloco de carnaval sem samba. Sem graça.”
Aqui começamos com uma catacrese “Os trens chegavam e partiam (.)”, olhamos e entendemos e pelo hábito do uso, existe no leitor a demora para lembrar que na verdade os carros ferroviários são guiados, não tem vontade própria – como o processo da vida de Gira-Mundo. Ele está aí, já não é mais sexta-feira, mas já são sessenta anos, os sons as das articulações envelhecidas comungam com “ o som das frenagens,” suas lembranças das experiências de vida tão olfativas estão no “cheiro de graxa”, o atrito assobiado das rodas das locomotivas nos trilhos, o destempero do corpo cansado está ali no “ calor subindo das ferragens”.
Suas esperanças de seguir os projetos aparafusados encontram-se na poesia será que “Agora, é tarde demais para ser reprovado… (666, QUINTANA, Mário). Os “passageiros negligentes” são as inquietações de um nômade que viveu perto demais do ninho, embora a alma fugisse, seja para as delícias do som das cascas de barro que cobria o menino, seja para as lutas por justiças solitárias do engraxate, seja para os amores. “As rodas” que seguem “sempre no mesmo sentido” é a própria existência do homem Gira-Mundo. O modo correto para fugir de tudo era fugir, mas não mocosar-se como o adolescente que escondera perto da mãe quando não pode lutar contra a corrupção dos engraxates.
Ao observar as mãos, eis que os sessenta anos que estava já aflorado, se apresenta a ele, reais, um por um, nas cicatrizes “encrostadas,” na “ pele envelhecida,” e dá-se o resgate, o perdão do homem ao menino coberto “da lama seca do mangue.” Sensação tão forte que o hábito antigo de tirar da pele a lama com a unha despertou e a lembrança da derme dura feito “escama, feito casca de árvore” voltou forte.
É, ao fim do texto, só uma esperança, que Rosaldo possa ter conseguido entender que “A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa.” e talvez embarcar no trem seja a melhor forma de terminar a tarefa.
O conto é uma síntese do que foi ou é a vida de Rosaldo, foi através da narrativa de sua história que “a casca dourada e inútil das horas” que perfazem sua existência chegou até nós.
* M. Merleau-Ponty in Fenomenologia da Percepção
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