Vamos falar de Contos?
Um dos gêneros literários que mais me atrái é sem dúvida o CONTO. O Conto é uma espécie de Literatura que, mesmo sendo considerada de leitura rápida, prende o leitor e faz ele buscar mais, pensar e viajar. Bem, quem me conhece sabe que comecei minhas leituras com clássicos: Dom Casmurro; a Bíblia; Um certo capitão Rodrigo e outros livros que achava nas coisas de minha tia Ivan ou no lixo. Érico Veríssimo foi um dos que achei no lixo. Como também a Literatura Japonesa, praticamente tropecei em Yukio Mishima e suas Confissões. Mas, a bilioteca da tia, o lixo e a Faculdade me deixaram um vácuo enorme: Moreira Campos.
Moreira Campos é um escritor que poucos falam, mas, de escrita elementar e, talvez, por isso, incompreendida. Entretanto, uma segunda olhada para seu legado literário daria aos leitores algo mais. E, com certeza, a ilusão de escrita concisa se desfaria. O autor de "Vidas Marginais" trabalha a palavra com certeza e sensibilidade, um verdadeiro engenheiro do verbo, desenha suas personagens com precisão estética, sem estender-se em detalhes, mas, sem perder a poesia. Sim, o Conto de Moreira Campos é marcadamente poético, como definia Monteiro Lobato, ao afirmar, em carta, ao amigo Godofredo Rangel: ''Sou partidário do conto, que é como o soneto na poesia."
Para a escrita pouco difundida do escritor de "Dizem que os cães vêem as coisas", o Conto era sim, marcadamente "a narração de uma situação passageira na vida de uma personagem, com seu meio normal, só ou em relação com alguém", como vaticinou Silvio Romero, porém, sem perder essas características, amplia as nossas possibilidades de leituras. Entretanto, ao afirmar que sua escrita é poetica, não estou dizendo que seja romântica. Muitos de seus Contos são marcadamente cruéis, como "Os Doze Parafusos"...
O Conto que escolhi para mostrar a vocês poderia acontecer em qualquer lugar. Espero que gostem.
E até mais...
Dizem que os cães vêem coisas
Moreira Campos
Ela chegou diáfana, transparente, no vestido branco que lhe descia até os pés calçados pelas ricas sandálias de pluma. Ninguém lhe ouviu os passos. Sentou-se à beira da grande piscina, cruzando as pernas longas. Chegou antiqüíssima, atual e eterna, com a sua cara de máscara. Moldada em gesso? Apenas uma presença, porque pousou como uma sombra. Mas por um fragmento de tempo, um quase nada, reinou entre todos um silêncio largo, que se estendeu pelo vasto terreno murado da mansão ensombrada pelas árvores, dominou a enorme piscina e emudeceu as próprias crianças pajeadas pelas babás de aventais bordados, e vejam que as crianças são indóceis.
Um presságio.
Fragmento de tempo apenas, porque o homem gordo, de ventre imenso, saltou dentro da piscina com o copo de uísque na mão. Espadanou água por todos os lados, a piscina transbordou. Muitos se molharam, outros saltaram da cadeira de lona.
- Bruto! – disse alguém íntimo, sem que ele se aborrecesse, bêbado.
A onda de água despejou-se sobre Ela, que não se moveu: era trespassável e transparente. Floco de névoa pronto a esvoaçar. Permaneceu parada, a cara imóvel, nenhum ricto. Apenas parecia consultar no pulso um relógio invisível, para marcar o tempo. O homem de ventre enorme já estava à beira da piscina, gotejante e trôpego, para uma nova dose de uísque, os dedos graúdos catando no balde os cubos de gelo. Mulheres seminuas, o cordão do biquíni, as nádegas reluzentes de sol e gotas dágua. As rodas, as conversas, os garçons que circulavam, as bandejas de salgadinhos.
Uns óculos escuros sofisticados no sutiã mínimo:
- Por favor.
O garçom atendia, solicito, perdendo os olhos ávidos nos seios mal contidos, oferecidos e inatingíveis.
- Obrigada.
O garçom mantinha a dignidade, ereto. A menina chegou e segurou a mãe pelo queixo:
- Mãe-ê, quero uma coca-cola.
A mãe não lhe dava atenção em flerte com o recente campeão de vôlei, uma estrutura de tórax (a mãe da menina contrariava-se apenas com o tufo de pêlos que ele tinha no peito, quase imoral). A menina impacientava-se:
- Mãe-ê, uma coca-cola.
- Deixa de ser chata!
O campeão levantou-se para apanhar o refrigerante. Em roda mais distante conversavam os homens graves: a última medida do governo, a crise econômica.
- O país vai à bancarrota.
- Vai o quê?
- A bancarrota.
- Fazia tempo que eu não ouvia essa palavra.
- Mas vai.
Aceitava-se a bancarrota sem muita convicção. Na grande varanda, as senhoras grisalhas e indesnudáveis, pulseiras tilintantes na flacidez dos braços, discutiam os novos valores morais e comentavam o recente desquite.
- A menina dela não tem um ano de casada.
- É a segunda que se separa.
- Como?
- A segunda.
maitre, porque era solene) curvou-se ao seu ouvido. Ela se livrou do violão, levantou-se e bateu palmas chamando todos para o almoço à americana, as mesas sob as árvores. Cada um apanhou o seu prato, formaram-se as filas, o homem gentil cedeu lugar a umas nádegas rijas, cortadas sempre pelo cordão do biquíni:
Aniversário da dona da mansão, que se acompanhava ao violão com graça, aplaudida pelos que estavam em volta. O garçom (ou
- Faz favor.
- Obrigada.
Os cães de raça latiam e uivavam desesperadamente nos canis (e dizem que os cães vêem coisas). Foi preciso que o tratador viesse acalmá-los, embora eles rodassem sobre si mesmos e rosnassem. A distância, a piscina quase olímpica, agora deserta: toalhas esquecidas. O vidro de bronzeador, o cinzeiro sobre a mesinha cheio de pontas de cigarro marcadas de batom.
As filas. Alguém tangeu o gato que lutava com um pedaço de osso. Lenita fez o prato do marido, preparou também o seu. Mordia a fatia de peru com farofa, quando se lembrou do filho:
- Cadê o Netinho?
Certa angústia na voz. Chamou o marido, gritou pela babá, que se distraía com as outras na varanda. Olhos espantados e repentino silêncio talvez maior de qualquer outro. Refeições suspensas, uma senhora mantinha no ar o garfo cheio. Tentavam segurar Lenita. oEla se desvencilhava:
- Cadê o Netinho? Cadê?
As águas da grande piscina eram tranqüilas, apenas levemente franjadas pelo vento. Boiava sobre elas uma carteira de cigarros vazia. Mas a moça que se aproximava parecia divisar um corpo no fundo, preso à escada. Voltaram a afastar Lenita, o marido a envolveu nos braços possantes, talvez procurando refúgio também. O campeão de vôlei atirou-se à piscina e veio à tona sacudindo com a cabeça os cabelos longos: trazia sob o braço um corpo inerme, flácido, de apenas quatro anos e de cabelos louros e gotejantes.
O médico novo, de calção, tentou a respiração artificial, e boca-a-boca (os lábios de Netinho estavam arroxeados), e levantou-se sem palavras e sem olhar para ninguém. Lenita soltou-se e agarrou-se ao filho:
- Acorde, acorde! Pelo amor de Deus, acorde?
Conseguiram afastá-la mais de uma vez, quase desmaiou. A amiga limpava-lhe com os dedos a sobra de farofa que se grudava ao seu rosto. Os cães de raça voltavam a a latir desesperadamente, e dizem que os cães vêem coisas.
Lenita ficou para sempre com a sensação do corpo inerte e mole entre os braços. Uma marca, uma presença, que procurava desfazer com as mãos. Cabelos louros e gotejantes. Às vezes, ela despertava na noite:
- Acorde, acorde!
A presença também daquele instante de silencio que pesara sobre a piscina. Um pressentimento apenas? Precisamente o momento em que Ela chegara, transparente e invisível, e se a senhora à beira da piscina, cruzando as pernas longas, antiqüíssima, atual e eterna.
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Fonte: CAMPOS, José Maria Moreira. Dizem que os cães vêem coisas. Fortaleza: Edições UFC, 1987.
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