terça-feira, março 31, 2020

Conto - À beira do pouso - Hugo de Carvalho Ramos

A Literatura será sempre uma caixinha de surpresas.
Andando por aí encontrei um Conto de Hugo de Carvalho Ramos e resolvi partilhar com vocês.
Hugo de Carvalho Ramos (Vila Boa de Goiás atual Cidade de Goiás, 21 de maio de 1895 — Rio de Janeiro, 12 de maio de 1921) foi poeta e contista e sua obra permanece entre nós. Para que vocês conheça a sua poesia podem ir no Antonio Miranda, tem algumas lá...
Quanta beleza!

A Beira do Pouso

Hugo de Carvalho Ramos


Contavam casos. Histórias deslembradas do sertão, que aquela lua acinzentada e friorenta de inverno, envolta em brumas, lá do céu triste e carregado, insuflava perfeita verossimilhança e vida animada.


Pela maioria, contos lúgubres e sanguinolentos, eivados de superstições e terrores, passados sob o clarão embaçado daquela mesma lua acinzentada e friorenta de inverno, no seio aspérrimo das solidões goianas.


Acocorados à sertaneja sob a copa desfolhada do pouso – um jatobá gigantesco – aquentavam fogo, a petiscar baforadas grossas dos cigarrões de palha, ouvidos atentos ao narrador.


A cangalhada, vermelha à luz da fogueira e rebuçada em ligais, amontoava-se em forma de toca ao pé da árvore, resguardando o carregamento, e, na necessidade, dado o mau tempo, todo o pessoal. Uma neblina leve e hibernal, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, embuçava ao fundo a campina, onde cincerros de tropa badalavam intermitentes.


E, sob aquele céu frio e austral de maio, estiolava-se ressequida a vegetação tenra e rasteira dos campos goianos.


O arrieiro, mestiço traquejado e serviçal, na sua voz grossa e arrastada de cuiabano, arrematava o final dum conto de lobisome.


O silêncio – pesado – restabelecera-se debaixo da impressão sinistra daquela narrativa; e o Aleixo – um caburé truculento amigo da boa pinga e frequentemente mudando de patrão pelo seu gênio teimoso e arreliado, – puxando para si o cuité fumegante de congonha e chupitando uma golada, começou então assim:


– Naquele tempo viajava eu escoteiro, no meu jaguané de fama, por estas estradas da minha terra; isso, noitão cerrado e vésperas da Paixão. Manhãzinha, Deus servido, devia bater em Santa Rita pra negócio de precisão e a lua só pela madrugada despontaria. Marchava apressado, tendo a cortar todo um estirão de oito léguas bem puxadas para alcançar o arraial. Vai senão, ali nas alturas do Bugre, ouço passos cadenciados à minha frente. Olhei, o lugar era ensombrado, o caminho muito estreito e solapado não tinha desvio; e, como lhes dizia, não havia luar. Assim na sombra, assemelhou-se-me a dois homens baixos, conduzindo qualquer coisa, a modo de trouxa, num varão.


“– Naturalmente soldados em diligência para Santa Leopoldina –, calculei. Num claro de mato, achegando o animal, vi perfeitamente: eram dois negros acurvados, num andar ora lento, ora apressado, que levavam ao ombro uma rede de defunto. Cravei as esporas no meu bicho pra ganhar a dianteira – que eu não arreceio um cabra de maus fígados, mas tenho uma ojeriza dos diabos a tudo que me cheira defunto; e isso, desde aquela estopada onde o Policarpo viu que um jacaré não sai à toa da bainha e que eu, apesar de simples camarada, não guardo desfeita para depois. O bicho fiel certamente estranhou as rosetas, tanto que meteu num trote bruto de pôr tripas pela boca afora do peão mais desabusado. Os pretos excomungados, sacolejando a rede, começaram a trotar lá adiante.


– Olá – gritei. – Param vocês aí com o defunto e abram-me passagem. – Os carregadores nem pio, antes continuaram, arremedando, a correr duro, vergados sob o varão, cabisbaixos e macambúzios. Achei esquisito. Joguei o jaguané a galope: galoparam também, ganhando distância, a desaparecer no sombreado espesso das árvores. Qual, isso é ainda efeito da beijoca que dei ali atrás ao frasco de cachaça, ia pensando. Noutro claro, porém, lá tornei a enxergar os dois pretos condutores, arqueados e silenciosos debaixo da carga maldita. Iam depressa, tanto como o meu punga. O carreiro apertava, aprofundando-se; não tinha por onde atalhar. Demais, um travo de zanga subia-me à garganta.


– Eu lhes amostrarei, canalhas; estão caçoando comigo, seus bêbados, pois esperam aí. – Varei o meu bicho nas chilenas e ele disparou à toda, que o terreno era um seu tico movediço, mas o animal, apesar de cansado, era de fiança.”


– E pegou-os?


– Qual o quê, seu Zé; os demônios abriram numa carreira de curupira, a fazer mais estrépito que o casco do meu bicho! Assim andamos bom pedaço, o carreiro mais estreito e solapado, o arvoredo mais fechado e carrancudo, o sítio mais escuro. Afinal, não ganhava nem perdia, e o pingo a resfolegar já bambo. Sofreei a marcha. Os pretos, bufando alto debaixo da carga, regularam logo a sua andadura pela minha. Pus o sendeiro a passo: eles, do mesmo modo, pausados, em cadência, recomeçaram o movimento primitivo, a passo, desocupados. Decididamente esquisito, mesmo muito esquisito. Parei o pingo. Os pretos, imitando, pararam. Fiquei ali imóvel longo tempo, os olhos neles grudados, sem tino, enquanto que o minguante principiava a tingir de açafrão a copa folhuda das árvores, e lentamente ia abaixando a sua luz amarelada sobre o carreiro. Acoroçoado, reencetei a marcha; eles fizeram o mesmo, e assim continuamos por mais de hora, eu calado, apertando nos dedos o cabo encerado do jacaré, eles arcados, pausados, o fardo ao ombro, em cadência de soldados. De supetão – desfiava eu o creio-em-deus-padre de trás para diante mais uma vez – o carreiro desembocou num campo largo, coalhado de luar. A lua deu de chapa nos dois carregadores. Adivinham, se podem, o que vi então, todo apalermado, assombrado mesmo.


– O cuca – aventurou tímido um.


– Qual! Uma vaca.


E perante o assombro descomedido daquelas feições rústicas e encardidas de sol, o Aleixo arrematou com pachorra:
A
– Pois isso mesmo, os dois pretos arcados, eram seus quartos escuros e a rede de defunto, a barriga malhada. Como o carreiro era fundo e apertado, ela não tivera por onde torcer; o escuro, a solidão daqueles lugares e – pra tudo dizer – o medo, fizeram o resto.


A companhia respirava aliviada.


O plenilúnio acinzentado e friorento de inverno, envolto em brumas, lá do céu triste e carregado, insuflava vida e animação às personagens fantasmagóricas daquelas histórias primitivas.


Cincerros badalavam intermitentes e sonoros na campina ao fundo, onde a neblina hibernal do sertão, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, abafava o horizonte.


Fumegando, a chocolateira fuliginosa e aromatizada de congonha passou de mão em mão, transbordando os cuités.


A fogueira – em brasa – tremeluzia.


Um outro tomou a palavra.

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