quarta-feira, maio 16, 2012

Encostei-me - Álvaro de Campos



Sou meio maluca mesmo!
Imaginem que de todos os poetas deste mundo de Deus, tinha que gostar de um tão maluco quanto eu? Não sei porquê amo tanto Fernando Pessoa. Conheci por acaso na Biblioteca Cora Coralina, quando criança, em São Paulo, sentávamos juntos naquelas cadeiras duras e ríamos e chorávamos hora s a fio. Algumas vezes o “tio” Luiz, funcionário da Biblioteca vinha ao nosso encontro e como se não visse o poeta, dizia-me: “Menina, faltam 10 minutos para fechar”. Então me levantava meio chateada, me despedia do poeta, colocando seu livro sobre a bandeja e ia embora, ainda inebriada por suas sábias palavras. Fernando – Pessoa – era alguém intuitivo, parecia saber que eu precisava de carinho, então com aquele jeito meio estranho me indicava outros poemas, sempre dele, mas com outro nome, que era para eu, ainda tão menina, não me cansar dele. Espertinho! Hoje me deu saudades do Fernando e da Cora Coralina, mas aqui em Manaus, não tem nenhum dos dois. Reli então Encostei-me e vou dormir.
Bom dia!

Encostei-me

Encostei-me para trás na cadeira de convés e fechei os olhos,
E o meu destino apareceu-me na alma como um precipício.
A minha vida passada misturou-se com a futura,
E houve no meio um ruído do salão de fumo,
Onde, aos meus ouvidos, acabara a partida de xadrez.

Ah, balouçado
Na sensação das ondas,
Ah, embalado
Na idéia tão confortável de hoje ainda não ser amanhã,
De pelo menos neste momento não ter responsabilidades nenhumas,
De não ter personalidade propriamente, mas sentir-me ali,
Em cima da cadeira como um livro que a sueca ali deixasse.

Ah, afundado
Num torpor da imaginação, sem dúvida um pouco sono,
Irrequieto tão sossegadamente,
Tão análogo de repente à criança que fui outrora
Quando brincava na quinta e não sabia álgebra,
Nem as outras álgebras com x e y's de sentimento.

Ah, todo eu anseio
Por esse momento sem importância nenhuma
Na minha vida,
Ah, todo eu anseio por esse momento, como por outros análogos ---
Aqueles momentos em que não tive importância nenhuma,Aqueles em que compreendi todo o vácuo da existência sem inteligência para o compreender
E havia luar e mar e a solidão, ó Álvaro.

Álvaro de Campos



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